Lazarilho de Tormes

11 outubro 2015

"Desejava de todo o coração e até pedia a Deus que todos os dias matasse uma pessoa. E quando dávamos os sacramentos aos enfermos, em especial a extrema-unção, no momento em que o clérigo manda os presentes rezarem, eu era logo dos primeiros, e com todo o fervor e devoção rogava a Deus que o mandasse, não para onde melhor servido fosse, como se costuma dizer, mas directamente para o outro mundo.

E quando algum deles escapava, o Senhor me perdoe, que muitas vezes o mandei para o Diabo. Enquanto aqueles que morriam recebiam de mim tantas bênçãos. Porque durante todo o tempo que ali estive, e andou perto de três meses, só morreram vinte pessoas, e essas, creio bem que fui eu que as matei, ou melhor, morreram a meu pedido. Porque vendo o Senhor que eu trazia permanentemente a morte danada em cima de mim, julgo que foi com prazer que os matou para me dar a vida. Mas os tormentos que naquela altura padeci não tinham remédio. Porque se nos dias de enterro eu comia, naqueles em que não morria ninguém, habituado à fartura, quando era obrigado voltar à minha fome diária, ainda sofria mais. De maneira que não via descanso a não ser na morte, que também para mim, como para os outros, por mais de uma vez desejei; mas ela nunca vinha, embora eu a trouxesse sempre diante dos olhos."

Lazarilho de Tormes
(primeira novela picaresca da literatura espanhola. Datada de 1554, autor anónimo)

Um livro que recebi dum amigo de há muitos anos atrás.
Voltar ao Gato Vadio para ouvir ler algumas das desventuras do desafortunado Lázaro.

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